Operações de permuta no Direito Brasileiro
A troca ou permuta é um instituto consolidado no Direito brasileiro. No antigo Código Comercial (Título IX – Lei 556/1850), o tema era tratado como “escambo ou troca mercantil” (Título IX), dispondo que essa modalidade contratual representava “[…] ao mesmo tempo duas verdadeiras vendas, servindo as coisas trocadas de preço e compensação recíproca (artigo 191). Tudo o que pode ser vendido pode ser trocado” (artigo 221). Já o Código Civil de 1916 (artigo 116) tratava apenas da troca, ocasionando a cisão das disciplinas entre os contratos de Direito Civil e de Direito Comercial. Esse cenário encerrou com o advento do Código Civil de 2002, que trouxe um tratamento unificado.
Já a incorporação de ações, instituto com alguns traços similares, como será mais detalhado a seguir, foi disciplinada pela Lei 6.404/1976 (Lei das S.A.). Ambos, a permuta e a incorporação de ações, são institutos muito relevantes nas reorganizações societárias.
Nos termos do artigo 3º, §3º, da Lei 7.713/1988, os ganhos verificados na operação de permuta devem compor o rendimento bruto da pessoa física para fins de ganho de capital. Já para as pessoas jurídicas, apenas para traçar um paralelo, compõem o ganho de capital, para fins de lucro real, o resultado na alienação, a desapropriação, a baixa por perecimento, a extinção, o desgaste, a exaustão ou a liquidação de bens do ativo não circulante, conforme dispõe o art. 31 do Decreto-Lei 1.598/1977.
A permuta de unidades imobiliárias sem o pagamento de torna sempre recebeu um tratamento diferenciado pela Administração Fazendária Federal, porquanto não há ganho de capital nos casos em que o permutante reconhece o mesmo valor contábil do bem objeto da permuta.
Muito embora o artigo 29, inciso IV, da Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal 84/2001 e o artigo 132, inciso II, do Regulamento do Imposto sobre a Renda estabeleçam que “são excluídos os ganhos de capital” – o que, em uma leitura apressada, conduziria à conclusão de que se trata de uma isenção – verificados em permutas imobiliárias, a lógica legislativa é pautada pela ideia de que a troca não é representativa do evento crítico para a realização da renda, mas de mera substituição dos bens.
Incorporação de ações no Direito Brasileiro
A incorporação de ações, por sua vez, é disciplinada pelo artigo 252 da Lei das S.A., no capítulo relacionado às sociedades coligadas, controladoras e controladas. Em linhas gerais, a incorporação de ações é representativa de aumento de capital da sociedade incorporadora com a entrega de ações, tendo como resultado prático que a sociedade cujas ações foram incorporadas seja sua subsidiária integral, mantendo-se a autonomia e independência da sociedade incorporada.
Trata-se de um instituto que veio, como consta da própria exposição de motivos da Lei das S.A., para viabilizar a incorporação de sociedade sem a extinção da personalidade jurídica da sociedade incorporada. Embora a exposição de motivos faça alusão à incorporação de ações como “equivalente” à incorporação de sociedades, essa equivalência é uma impropriedade técnica e jurídica, representando uma mera imprecisão terminológica inerente ao processo legislativo.
É assim, veja-se, porque, enquanto na incorporação de ações o que se incorpora – o pleonasmo é intencional – são as ações da sociedade, transformando-a, dessa forma, em uma subsidiária integral, na incorporação de sociedades o patrimônio líquido é integrado ao capital da incorporadora, operando-se a extinção da sociedade, conforme disciplina o artigo 227 da Lei das S.A.. A despeito de ambas as modalidades de incorporação serem representativas de aumento de capital, os institutos são diferentes, em termos práticos e, mais importante, jurídicos.
Ainda no instituto da incorporação de ações, mas deixando de lado a disciplina aplicável aos contratos com pessoas jurídicas e algumas exceções específicas,[1] é importante ter em mente que o negócio jurídico que aqui se observa envolve, por óbvio, os sócios de ambas as sociedades – incorporadora e incorporada. Em termos práticos, as ações por eles detidas não são alteradas, havendo mera substituição das posições dos sócios da sociedade incorporada pelas ações da incorporadora.
Esse tipo de ato, no entanto, requer uma avaliação econômica das ações das pessoas jurídicas envolvidas, o que implica aferição de seus respectivos valores. Por vezes esse valor supera o valor contábil das ações incorporadas, o que pode conduzir ao reconhecimento dessa mais valia na sociedade incorporadora, gerando, em alguns casos, dúvidas sobre a existência de um possível ganho a ser tributado nas pessoas físicas dos sócios da sociedade cujas ações foram incorporadas – convertida em subsidiária integral.
Seguindo essa linha de raciocínio, concentrando a atenção no regime fiscal aplicável às permutas praticadas por pessoas físicas para fins de Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF), para ser mais preciso na análise, nota-se que a Administração Fazendária Federal não admite a permuta para fins tributários de bens não imobiliários,[2] apurando-se o ganho de capital como dação em pagamento.
Imposto de Renda Pessoa Física: hipótese de incidência
Antes de avançar em maiores digressões sobre a tributação do IRPF nas permutas, convém relembrar que, por força do artigo 43 da Lei 5.172/1966 (CTN), só se cogita da incidência do imposto se:
- verificado o acréscimo patrimonial;
- verificado em dois momentos diferentes, sempre previstos em lei;
- disponível economicamente ou juridicamente;
- que caracterize renda ou proventos de qualquer natureza – consoante a definição constante dos incisos I e II do dispositivo; ou
- decorrente de negócios jurídicos bilaterais, excluindo-se as transferências patrimoniais.
Noutras palavras, diferentemente do que ocorre com os impostos que gravam o patrimônio de forma estática – tal como são, por exemplo, o ITR, o IPTU e o IPVA –, a hipótese de incidência do imposto é, no âmbito da generalidade e abstração, endereçada ao acréscimo patrimonial, desde que ele seja representativo da faculdade de usar, gozar ou dispor de ganhos efetivamente acoplados ao patrimônio, não sujeitos a condições suspensivas, que ingressem para o patrimônio do sujeito passivo.
Essa é a noção que melhor atende à capacidade contributiva inerente ao imposto, viabilizando o pagamento do tributo com o produto do negócio jurídico que desencadeou o acréscimo patrimonial.
Divergências sobre o ganho de capital na permuta e incorporação de ações
O tema é objeto de intensos debates entre os contribuintes e o fisco. Sustenta a Receita Federal que os ganhos verificados nas permutas não imobiliárias devem ser oferecidos à tributação.[3] É curioso notar que esse raciocínio não é unânime entre os próprios órgãos da administração federal, conforme se observa em outros pronunciamentos mais antigos.
Anos atrás, em razão do Programa Nacional de Desestatização (PND), os licitantes vencedores entregavam títulos da dívida pública federal e outros créditos em troca de ações de companhias privatizadas. A dúvida sobre os reflexos tributários daquelas operações culminou na edição do Parecer 970/1991, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
Aludido parecer, utilizando-se das lições de Ruy Barbosa, esclarece que o momento do fato gerador “[…] não seria aquele da troca, mas sim quando o particular vendesse a participação acionária trocada”, ressaltando que a permuta, isoladamente considerada, não é representativa de disponibilidade econômica ou jurídica.
Para complementar, essa mesma leitura foi reproduzida em outra manifestação da Procuradoria, o Parecer PGFN 454/1992, que consignou que:
“[…]como bem acentuou Pontes de Miranda, na troca há correspectividade sem preço, porque os figurantes da relação jurídica não entram com dinheiro, consequentemente inexiste fato gerador do tributo. Poder-se-ia dizer, no caso da permuta, sem torna de dinheiro, que o momento da incidência seria deferido no tempo.”
O parecer é claro ao registrar que a tributação pelo ganho de capital na permuta de bens consiste na violação do patrimônio, pois “a sua tributação configuraria, por conseguinte, imposto sobre a propriedade e não sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Não existe lei mandando cobrar imposto na permuta de bens, não onerosa. Ainda que existisse tal diploma legal, seria fulminado pelo vício insanável da inconstitucionalidade”.
A despeito de essa ser, em nossa visão, a melhor leitura sobre o tema, posteriormente a Administração Fazendária, quando da edição do Parecer PGFN CAT 1.722/2013, manifestou o entendimento de que a neutralidade fiscal das permutas era restrita ao âmbito do PND, devendo ser oferecida à tributação a diferença positiva entre o custo de aquisição e o valor dos bem mobiliários permutados, independentemente de torna. Eis o motivo da controvérsia entre o fisco e os contribuintes.
Compulsando os precedentes administrativos e judiciais que examinaram o tema, o que se verifica é que a maioria esmagadora dos casos que tratam do assunto é sobre permutas imobiliárias e questões de prova sobre a forma de pagamento. No entanto é possível identificar acórdãos do Carf que consideram, somente para ilustrar:
- tributável pelo IRPF a diferença positiva verificada na permuta de bens e direitos (Acórdãos 102-44.975 e n. 106-14.175); assim como, noutro sentido, o posicionamento de que
- inexiste a incidência do IRPF na permuta de bens, excepcionada a torna (Acórdão 102-47.844 – caso de permuta de imóvel por participação societária).
Apontadas as divergências, na linha dos supracitados pareceres, observa-se a manifestação do entendimento de que na permuta não há disponibilidade econômica ou jurídica – o que ocorre é um fato permutativo que não implica a realização da renda. Ressalvados os raros e específicos casos em que o bem permutado assume a função de “quasi-moeda”, tomando emprestadas as palavras de Bulhões Pedreira, não há incidência do IRPF nas operações de permuta, até porque qualquer valor estimado do bem permutado não pode servir de base de cálculo do um tributo que grava o acréscimo patrimonial efetivo.
Veja que optou o legislador por conferir um tratamento simétrico para a redução de capital e a integralização de capital, admitindo que as pessoas físicas possam “transferir a pessoas jurídicas bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado” (artigo 23 da Lei 9.249/1995), sendo que a tributação será devida, à opção do contribuinte, se a “transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens” (artigo 23, §2º, da Lei 9.249/1995).
O racional subjacente à não tributação das permutas é, portanto, igualmente aplicável à incorporação de ações. Isso se deve, afora os muitos argumentos que podem ser desenvolvidos sobre o tema, ao fato de que a situação das pessoas físicas envolvidas em ambos os cenários apresenta demasiada semelhança: troca de ativos.
O que há são meras movimentações patrimoniais, sem qualquer elemento novo de riqueza – passível de ser objeto de tributação – que se incorpore ao patrimônio do sócio detentor das ações incorporadas. Ainda que se possa supor um acréscimo em relação às ações anteriormente detidas no momento da substituição, tal crédito é meramente potencial, não há disponibilidade jurídica ou econômica da renda.
A inexistência, pois, de qualquer ganho por parte do acionista da empresa vertida em subsidiária integral já foi observada pela 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) no Acórdão 9202-003.579. Na ocasião, o Conselho reconheceu que, nesse cenário, há mera “substituição no patrimônio do sócio, por idêntico valor, das ações da empresa incorporada pelas ações da empresa incorporadora”, afastando a tributação do IRPF – sujeita ao regime de caixa – dado o fato de que “o contribuinte não recebeu nenhum numerário em razão da operação autuada”.
O tema permanece controvertido, sendo possível identificar orientações nos dois sentidos. Convém destacar, no entanto, que essa leitura também foi conferida ao tema pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região na Apelação 5052793- 42.2011.4.04.7000/PR, ao reconhecer que “a mais valia decorrente da avaliação das ações dadas em substituição, determinada pelo art. 252 e §§ da Lei das Sociedades Anônimas, não está sujeita à incidência do Imposto de Renda da Pessoa Física”. Nesses casos, o fato de o contribuinte atribuir às ações recebidas em substituição valor idêntico àquelas detidas anteriormente foi determinante para o desfecho favorável.[4]
Esses dois temas comportam digressões que tangenciam temas caros ao Imposto sobre a Renda. As ponderações aqui trazidas sobre a tributação das pessoas físicas buscam somente reforçar que os fatos permutativos não estão compreendidos na hipótese de incidência do imposto, pois o acréscimo patrimonial passível de ser oferecido à tributação deve ser realizado financeiramente.
Para encerrar, vale enfatizar que a permuta e a incorporação de ações são instrumentos jurídicos muito úteis para resolver situações cotidianas e viabilizar importantes reorganizações societárias. A interpretação fazendária culmina na exigência do IRPF sem manifestação da capacidade contributiva, sem disponibilidade e, ainda, comparece como um obstáculo à efetividade desses institutos previstos pelo Direito Civil.
[1] Como, por exemplo, a IN n. 107/1988, que trata dos negócios com pessoas jurídicas e do art. 65 da Lei n. 8.383/1991, que cuida das permutas de títulos de dívida pública de ações privatizadas.
[2]Item n. 604 – file:///Users/rodrigoholanda/Downloads/PR-IRPF-2022-v-1-2-2022-05-16%20(2).pdf
[3]Consulta SRRF n. 140/2006.
[4] Muito embora essa compreensão tenha orientado alguns casos isolados, os pronunciamentos administrativos indicam uma certa tendência à necessidade de apuração do ganho de capital nesse modelo de operação. É o que se observa dos Acórdãos n. 9202-005.533, n. 9202-005.534, n. 9202-005.618, n. 9202-008.371, entre outros.
Artigo de autoria do advogado Rodrigo Schwartz, sócio da Click Fiscal, e publicado no portal Jota, no dia 8 de junho de 2023.