Introduzido pela Emenda Constitucional (EC) 87/2015, o diferencial de alíquota (DIFAL) em operações interestaduais destinadas a consumidores não contribuintes do ICMS tem sido objeto de diversas discussões jurídicas.
Entenda, neste artigo, como funciona a sistemática do ICMS-DIFAL, quem é responsável pelo recolhimento e como calculá-lo a partir das alterações trazidas pela Lei Complementar (LC) 190/2022.
Criação e definição do diferencial de alíquota de ICMS
As discussões envolvendo o DIFAL de ICMS se acentuaram em um contexto de aumento das vendas online para consumidores finais não contribuintes e da transferência de mercadorias e serviços entre estados do território brasileiro.
Até então, a redação original do art. 155, §2º, VII, da Constituição Federal previa o diferencial de alíquota apenas para operações interestaduais cuja mercadoria, bem ou serviço fosse destinada a contribuinte de ICMS – também chamado DIFAL-Contribuintes.
Quanto às operações envolvendo consumidores finais não contribuintes de ICMS, por outro lado, o imposto somente era recolhido em favor do estado de origem do bem, mercadoria ou serviço, sem a cobrança do DIFAL.
No entanto, com a evolução do comércio eletrônico e a concentração de grandes varejistas em poucas unidades da federação, muitos estados se sentiam prejudicados com essa sistemática, uma vez que os entes federativos que concentravam maior número de empresas acabavam arrecadando valores muito superiores em comparação aos demais.
Para reduzir essa desigualdade, o Congresso Nacional editou a EC 87/2015, para autorizar o rateio do ICMS entre o estado de origem e o de destino da mercadoria, inclusive nas operações realizadas com consumidores finais não contribuintes do imposto. Assim, os estados de destino da mercadoria passaram a cobrar o diferencial de alíquota de ICMS nessas operações, de modo que o comerciante ficou responsável por recolher o ICMS correspondente à alíquota interestadual para o estado de origem e o imposto relativo ao diferencial entre a sua alíquota interna e a alíquota interestadual ao estado de destino.
Histórico das discussões judiciais envolvendo o ICMS-DIFAL
Na época da sua publicação, surgiram diversas discussões sobre a necessidade de a EC 87/2015 ser regulamentada por lei complementar antes que os estados pudessem exigir a cobrança do DIFAL (art. 146, inciso III, da CF/88), nas operações com adquirentes não contribuintes do ICMS.
Contudo, diante da regulamentação da matéria através do Convênio ICMS 93/2015, editado pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), os estados começaram a exigir o pagamento do DIFAL imediatamente.
Nesse contexto, os contribuintes recorreram ao Poder Judiciário com intuito de afastar a exigência, até que, em 2021, o STF declarou a inconstitucionalidade de parte do Convênio ICMS 93/2015, confirmando que essa regulamentação não supre a ausência de lei complementar para disciplinar a matéria (RE nº 1.287.019/DF – Tema 1.093 e ADI 5469)
O Supremo modulou os efeitos da ADI 5469, no seguinte sentido:
- Manteve o recolhimento do diferencial de alíquota de ICMS até 31/12/2021;
- A partir de 01/01/2022, determinou que o DIFAL só poderia ser exigido após a publicação e entrada em vigor de lei complementar disciplinando suas regras gerais.
Até que, em 5 de janeiro de 2022, foi publicada a LC 190/2022, disciplinando a cobrança do diferencial de alíquotas de ICMS. Ainda que a norma complementar tenha previsto que a produção de efeitos ocorreria somente após 90 dias da sua publicação (art. 3º), a LC deu origem a uma segunda discussão a respeito da matéria: a necessidade de observância do princípio da anterioridade anual.
Isso porque o ICMS não está elencado pelo art. 150, inciso III, §1º, da Constituição Federal como um dos tributos sob os quais não se aplica o princípio da anterioridade anual.
Em razão disso, os contribuintes passaram a defender que, considerando que a LC foi publicada em 2022, pela regra da anterioridade anual, o ICMS-DIFAL só poderia ser exigido a partir de 2023.
Ainda assim, o CONFAZ publicou novo convênio (Convênio ICMS 236/2021) para regular a LC 190/2022, prevendo sua aplicação imediata: “este convênio entra em vigor na data da sua publicação no Diário Oficial da União, produzindo efeitos a partir de 1º de janeiro de 2022” (cláusula décima primeira).
Desse embate entre estados e contribuintes, surgiram outras três ações diretas de inconstitucionalidade: as ADIs 7.066, 7.070 e 7.078. Entenda a discussão:
- De um lado, os contribuintes defendem que, conforme a decisão do próprio STF nos autos da ADI 5469, a criação do diferencial de alíquotas de ICMS criou uma nova relação jurídico-tributária que resultou em um “novo tributo”. Sendo assim, defendem que deveria ser observada a anterioridade anual;
- Já os estados, por outro lado, alegam que, embora tenha havido a criação de nova relação jurídico-tributária, não houve a criação de um “novo tributo”, mas somente a redistribuição das receitas entre estados, de modo que não caberia a aplicação do princípio da anterioridade anual.
Até o momento, oito dos onze ministros proferiram seus votos nas três ADIs:
- O relator, Min. Alexandre de Moraes, foi favorável aos estados e entendeu que a LC 190/2022 não precisa respeitar a anterioridade anual e nonagesimal, uma vez que não criou ou majorou um tributo;
- O Min. Dias Toffoli divergiu do relator e defendeu que deveria ser observada a anterioridade nonagesimal, tal qual previu o art. 3º da LC 190/2022. O voto de Dias Toffoli foi acompanhado pelo Min. Gilmar Mendes;
- Já o Min. Edson Fachin apresentou um terceiro entendimento afirmando que a criação do diferencial de alíquota de ICMS corresponde à criação/aumento de tributo e concluiu que a LC deverá observar ambas as anterioridades para produzir seus efeitos. O voto de Fachin foi acompanhado pelos ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, André Mendonça e Rosa Weber;
Na prática, se prevalecer a tese proposta por Fachin, que já conta com a maior parte dos votos proferidos até o momento, os contribuintes poderão recuperar os valores recolhidos indevidamente durante o ano de 2022. Caso contrário, a cobrança poderá ser considerada exigível já a partir de 2022.
A retomada do julgamento está marcada para o dia 12/04/2023.
Fato gerador e contribuintes do ICMS-DIFAL
Conforme mencionado no tópico anterior, o diferencial de alíquota de ICMS é aplicável às operações interestaduais de mercadorias, bens ou serviços como forma de equalizar a arrecadação de ICMS entre os estados.
Com relação ao contribuinte do DIFAL, a LC que alterou a Lei Kandir previu duas hipóteses distintas, a depender de quem adquiriu a mercadoria, bem ou serviço:
- Quando a venda for feita para consumidor final não contribuinte de ICMS: o contribuinte do DIFAL será o remetente da mercadoria, bem ou serviço — art. 4º, §2º, II, da Lei Kandir;
- Quando a venda for feita para consumidor final contribuinte do ICMS (varejista que adquire mercadoria para uso e consumo, por exemplo): o contribuinte do DIFAL será o destinatário da mercadoria, bem ou serviço — art. 4º, §2º, I, da Lei Kandir.
O fato gerador do DIFAL, por sua vez, também tem hipóteses distintas a depender do adquirente:
- Quando a mercadoria ou bem for adquirida por consumidor final não contribuinte de ICMS: o fato gerador ocorrerá no momento “da saída, de estabelecimento de contribuinte, de bem ou mercadoria destinados a consumidor final” — art. 12, XVI, da Lei Kandir;
- Quando a mercadoria ou bem for adquirida por consumidor final contribuinte de ICMS: o fato gerador ocorrerá no momento “da entrada no território do Estado de bem ou mercadoria oriundos de outro Estado” — art. 12, XV da Lei Kandir.
Além disso, cabe ressaltar que é o estado de destino da mercadoria, bem ou serviço quem deverá receber o valor correspondente ao diferencial de alíquota de ICMS, por força do art. 11, §7º da Lei Kandir (incluído pela LC 190/2022), ainda este que seja diferente do estado de domicílio do adquirente ou do tomador do serviço. Aliás, o art. 11, §7º da Lei Kandir inclusive já foi objeto de discussão pelo STF, nos autos da ADI 7158, que teve seu julgamento encerrado em 06/02/2023.
Na ocasião, os Ministros definiram que o estado de destino é “aquele em que efetivamente ocorrer a entrada física da mercadoria ou o fim da prestação do serviço” e reconheceram a constitucionalidade do dispositivo que trata do assunto.
Cálculo do ICMS-DIFAL: base única ou base dupla?
Um ponto relevante a ser observado consiste na identificação da base de cálculo do DIFAL, pois a legislação estabelece metodologias distintas para apuração da referida base de cálculo, a depender do destinatário da mercadoria. Enquanto no cálculo do ICMS-DIFAL de vendas realizadas para não contribuintes a base de cálculo é considerada única, nas operações destinadas aos contribuintes do imposto, ela será dupla.
Como o próprio nome já indica, o cálculo com base única é mais simples, pois a base de cálculo utilizada para apurar o ICMS devido ao estado de origem será a mesma utilizada para calcular o ICMS DIFAL, conforme estabelece o inc. X do art. 13 da LC 87/96.
No caso, as duas frações do ICMS devido na operação interestadual serão calculados com base no valor da operação ou o preço do serviço.
O valor relativo ao DIFAL nessa modalidade pode ser encontrado da seguinte forma:
Cálculo “por fora” ou base única |
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● DIFAL = Valor da operação x (Alíquota Interna de ICMS do estado de destino – Alíquota Interestadual de ICMS do estado de origem); ● Exemplo hipotético: uma mercadoria é vendida com valor total da operação de R$ 5.000,00. A alíquota interestadual praticada entre os Estados é de 12%, enquanto o estado de destino possui alíquota interna de 18%; ● Na prática: R$ 5.000,00 x (18% – 12%) = R$ 300 = DIFAL. |
Contudo, nas operações interestaduais destinadas a consumidores finais contribuintes do ICMS, a base de cálculo é considerada dupla, pois o valor sobre o qual será calculado o ICMS devido ao estado de origem poderá ser inferior ao do DIFAL devido ao estado de destino, conforme art. 13, IX, da Lei Kandir.
A diferença entre as duas bases de cálculo decorre da exigência imposta pelo art. 13, §6º, da Lei Kandir no sentido de que o valor da operação para cada fração do ICMS seja calculado considerando o imposto “por dentro”.
Enquanto a base de cálculo do ICMS devido ao estado de origem vai considerar apenas a inclusão da alíquota interestadual (4%, 7% ou 12%), a base de cálculo do DIFAL deve ser apurada com a inclusão da alíquota interna do estado de destino.
Assim, nas operações interestaduais destinadas a consumidores finais contribuintes do ICMS, o cálculo do ICMS-DIFAL passa por três etapas. Na primeira, é necessário calcular o valor do ICMS Interestadual para subtraí-lo do valor total da operação e obter o valor da primeira base de cálculo.
Utilizando o mesmo exemplo hipotético citado logo acima, temos:
Cálculo “por dentro” ou base dupla Etapa 1 – Encontre o valor do ICMS Interestadual e a Base de Cálculo 1 |
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● ICMS Interestadual = Valor total da operação x Alíquota Interestadual ICMS Interestadual = R$ 5.000 x 12% = R$ 600 Base de cálculo 1 = Valor total da operação – Valor do ICMS Interestadual Base de cálculo 1 = R$ 5.000 – R$ 600 = R$ 4.400 |
Na segunda etapa, será necessário encontrar a segunda base de cálculo, para então calcular o valor do ICMS Interno:
Cálculo “por dentro” ou base dupla Etapa 2 – Encontre Base de Cálculo 2 e o ICMS Interno |
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● Base de cálculo 2 = Base de cálculo 1 ÷ (1 – Alíquota Interna) = R$ 4.400 ÷ (1 – 18%) = R$ 4.400 ÷ (1 – 0,18) = R$ 4.400 ÷ 0,82 Base de cálculo 2 = R$ 5.365,85 ● ICMS Interno = Base de cálculo 2 x Alíquota Interna ICMS Interno = R$ 5.365,85 x 18% = R$ 965,85 |
E por fim, na terceira e última etapa, basta subtrair o valor encontrado de ICMS Interestadual do valor encontrado de ICMS Interno para encontrar o DIFAL:
Cálculo “por dentro” ou base dupla Etapa 3 – Subtrair ICMS Interestadual do ICMS Interno |
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● DIFAL = ICMS Interno – ICMS Interestadual DIFAL = R$ 965,85 – R$ 600 DIFAL = R$ 385,85 |
Ainda que o exemplo utilizado seja hipotético, da simples comparação entre o valor do DIFAL obtido em ambas as modalidades (R$ 385,85 no cálculo “por dentro” e R$ 300 no cálculo “por fora”) é possível concluir que o cálculo do DIFAL com base dupla implica em maior onerosidade.