O Decreto 10.854, de 10 de novembro de 2021, foi editado pelo governo federal com a finalidade de aprimorar a regulamentação do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), instituído há mais de quarenta anos, por meio da Lei nº 6.321/1976.
Em linhas gerais, o PAT visa estimular o investimento do setor privado na alimentação do trabalhador, especialmente os de baixa renda.
Na prática, o art. 1º da Lei nº 6.321/1976 autoriza que as empresas deduzam do lucro tributável o dobro das despesas incorridas em programas de alimentação do trabalhador.
Com a publicação do novo regulamento do PAT, um velho problema retornou à discussão: a indevida restrição, por mero decreto, de direito do contribuinte instituído por lei, caracterizando, como muitos contribuintes têm defendido, a violação ao princípio da legalidade tributária.
Mas o que realmente mudou no regramento do PAT com a instituição do Decreto 10.854/2021? Essa medida, de fato, configura violação à legalidade tributária? É disso que tratamos no presente artigo.
Linhas gerais do PAT na lei
Ao analisarmos os dispositivos legais que tratam das regras do PAT, dispostos nas Leis n. 6.321/1976 e 9.532/1997, podemos resumir o programa em dois pontos principais:
● as pessoas jurídicas poderão deduzir, do lucro tributável para fins do imposto sobre a renda o dobro das despesas comprovadamente realizadas no período base, em programas de alimentação do trabalhador (art. 1º, caput, da Lei nº 6.321/1976);
● essa dedução não poderá exceder, em cada exercício financeiro, isoladamente, ao valor de 4% sobre o “imposto de renda devido” (arts. 5º e 6º da Lei 9.532/1997);
Você encontrará as definições completadas acessando a Lei nº 6.321/1976 na íntegra.
Os velhos problemas da regulamentação infralegal do PAT
As restrições ao incentivo do PAT por normas infralegais foram motivo de intensas discussões.
Por anos, os contribuintes eram obrigados a buscar o Judiciário para reconhecer o direito de deduzir essas despesas do lucro tributável, conforme o previsto na Lei nº 6.321/1976.
Isso, porque a regulamentação infralegal desse programa vigente anos atrás, realizada pela Portaria Interministerial MTB/MF/MS nº 326/77 e pela Instrução Normativa SRF nº 143/86, estabelecia restrições por valores máximos sobre cada refeição, para fins de definição da quantia dedutível.
Por outro lado, essas limitações não foram previstas na Lei nº 6.321/1976.
Nesse contexto, o STJ pacificou o entendimento no sentido de que os atos infralegais extrapolaram a competência regulamentar e violam o princípio da legalidade (REsp 990313/SP).
A PGFN, após uma sequência de derrotas no Judiciário, editou o Parecer PGFN/CRJ/Nº 2623/2008, para finalmente reconhecer a ilegalidade da regulamentação infralegal do PAT, definido que os procuradores da Fazenda Nacional deveriam não mais contestar as iniciais dos contribuintes ou recorrer das decisões judiciais que tratem dessa matéria.
A vitória dos contribuintes nessa discussão foi consideravelmente significativa. Mas, não por isso, impediu que o Executivo não viesse mais a extrapolar a sua competência regulamentar nessa matéria.
Sobre o limite de 4% estipulado na Lei 9.532/1997 para fins de aproveitamento do benefício do PAT
Existe uma outra discussão relativa aos limites para dedução permitidos com o PAT, mas que não encontra amparo jurisprudencial tal como aquela anteriormente mencionada.
Não por isso, não deve ser discutida nos tribunais, pelo menos até que surja um precedente em caráter repetitivo que pacifique essa discussão.
Os artigos 5º e 6º da Lei nº 9.532/1997 definiram o limite à dedução das despesas a título de PAT de 4% sobre o “imposto de renda devido”.
Ou seja, reduziram o limite do incentivo fiscal – que antes era de 5% do lucro tributável, conforme o §1o do art. 1º da Lei nº 6.321/1976 – para 4% do imposto de renda devido, permanecendo inalterada a forma de dedução prevista no art. 1º da Lei nº 6.321/1976.
Ocorre que, da leitura dos artigos 5º e 6º da Lei nº 9.532/1997 é possível concluir que a limitação à dedutibilidade pelo PAT refere-se, apenas e unicamente, ao valor do imposto de renda devido.
Em outras palavras, a norma não estabelece nenhum critério adicional para limitação do Imposto de Renda nem qualifica a forma de apuração desse valor do imposto de renda.
Dessa forma, contrariamente ao que entende a Receita Federal (vide Solução de Consulta COSIT n. 79, de 28.03.2014), esse valor do imposto de renda é calculado tanto pela sua alíquota aplicável como regra geral, de 15%, como pelo seu adicional, de 10%, exigido para as situações em que o lucro ultrapassa o valor de R$20.000,00 por mês.
Afinal, sendo calculado com alíquota geral ou com o adicional, ninguém duvida de que a natureza dessa obrigação continua a ser de Imposto de Renda.
Não há, ressalta-se, nenhuma norma que exclua do conceito de imposto de renda devido o valor do adicional de IRPJ, sobre o qual se deve aplicar o limitador de 4%.
Reforça ainda mais essa conclusão a constatação de que, conforme dispõe o art. 1º, caput, da Lei nº 6.321/1976, as deduções do PAT partem do lucro tributável, de modo que, por decorrência lógica, inexiste razão para que o limitador de 4% não seja aplicado sobre o adicional também (equivalente a quase metade do imposto sobre a renda devido).
Ora, quando os contribuintes apuram o imposto sobre a renda a pagar, devem incluir tanto a alíquota de 15% (quinze por cento), quanto o seu adicional de 10% (dez por cento), não se tratando este último de tributo diverso, mas sim do próprio Imposto sobre a Renda. Inclusive, o valor apurado de adicional deve ser calculado e pago juntamente com o próprio imposto de renda, em DARF único.
Vale atentar, nessa linha, para a diferença entre a base para o limite de dedução, que congrega tanto o IR quanto seu adicional, do montante do benefício que corresponde a, no máximo, 15% dos dispêndios com alimentação, por expressa vedação legal, nos termos da Lei n. 8.541/1992, art. 10, § 2º e Lei n.9.249/1995, art. 3º, § 4º.
Entendimento contrário implicaria em restrição ao incentivo fiscal referente às despesas com PAT, em flagrante violação à norma de interpretação da legislação tributária que impõe o emprego da interpretação literal sobre enunciados que versam sobre incentivos fiscais, nos termos do art. 111 do CTN.
Os novos problemas da regulamentação infralegal do PAT
Dentre as diversas matérias tratadas no Decreto 10.854/2021, consta a definição de novos critérios quantitativos a restringirem os valores a serem deduzidos do lucro tributável no âmbito do PAT. Nesse sentido, o art. 645 do RIR/2021 teve a sua redação alterada pelo Decreto 10.854/2021 e passou a estabelecer:
Art. 645. […]
§ 1º A dedução de que trata o art. 641:
I – será aplicável em relação aos valores despendidos para os trabalhadores que recebam até cinco salários mínimos e poderá englobar todos os trabalhadores da empresa beneficiária, nas hipóteses de serviço próprio de refeições ou de distribuição de alimentos por meio de entidades fornecedoras de alimentação coletiva; e
II – deverá abranger apenas a parcela do benefício que corresponder ao valor de, no máximo, um salário-mínimo.
Duas restrições quantitativas foram adicionais ao regramento do PAT, com efeito:
- uma para definir que o benefício do PAT se aplica às despesas havidas com alimentação de trabalhadores que recebam até cinco salários-mínimos (inciso I);
- outra para definir que a parcela do benefício deve se limitar ao valor máximo de um salário-mínimo (inciso II).
Não há como negar que o Decreto n. 10.854/2021, realmente, restringe o direito à dedutibilidade previsto na lei instituidora do PAT.
Em termos jurídicos, portanto, podemos destacar que referida situação configura violação à legalidade tributária, e, por isso, deve ser rechaçada pelo Poder Judiciário.
A propósito, em pesquisa à jurisprudência dos tribunais regionais, identificamos uma única decisão em que foi analisada a reclamação do contribuinte sobre a ilegalidade dessas restrições.
Trata-se de decisão do TRF3 proferida em exame pedido liminar em no Agravo de Instrumento n. 5035633-63.2021.4.03.6100, da qual destacamos o seguinte trecho:
Assim, impõe-se reconhecer que o Decreto n° 10.854/2021 também extrapolou sua função regulamentar ao limitar a dedução, do imposto sobre a renda, das despesas de custeio realizadas no Programa de Alimentação do Trabalhador, contrariando os princípios da estrita legalidade e da hierarquia das leis.
Em face do exposto, defiro a medida liminar, para assegurar à impetrante o direito de deduzir, do seu lucro tributável para fins do IRPJ, o dobro das despesas comprovadamente gastas com o Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, nos termos do artigo 1° da Lei n° 6.321/76, observado o limite estabelecido pela Lei n° 9.532/95, afastando-se as restrições impostas pelos Decretos n°s 9580/2018, 10.854/2021 e suspendendo-se a exigibilidade do respectivo crédito tributário, nos termos do artigo 151, inciso IV, do Código Tributário Nacional.
É certo que as novas restrições ao PAT são muito recentes para que, já neste momento, seja possível examinar a jurisprudência atual a ponto de se estabelecer um prognóstico dessa discussão no judiciário.
Tanto isso é verdade, que apenas encontramos uma única decisão que examinou tal discussão, sem sede de agravo de instrumento.
Por outro lado, também é certo que existem elementos suficientes para se assinalar ser provável que o Judiciário venha a se pacificar no sentido da ilegalidade da nova regulamentação do PAT, veiculada no Decreto 10.854/2021, desde que os tribunais mantenham as premissas quanto aos limites do poder regulamentar, já definidas historicamente.
Como calcular o PAT?
Você tem dificuldade em entender como se calcula o PAT e como essas restrições limitam a dedutibilidade das despesas com alimentação?
Nós disponibilizamos uma tabela com fórmulas de cálculos, para ilustrar os critérios de cálculo para aproveitamento dessas despesas. Faça o download abaixo:
É possível alterar os campos destacados em amarelo para se calcular o valor da dedutibilidade do PAT nos dois cenários de aplicação e de não aplicação das restrições impostas pelo Dec. n. 10.854/2021.