Ninguém duvida da importância de a petição inicial apontar as partes legítimas para figurar no polo ativo da lide. A legitimidade (passiva e ativa) constitui uma das condições da ação, não sendo dado a ninguém pleitear direito alheio em nome próprio. Tamanha é a relevância desse elemento que o vício de ilegitimidade pode, inclusive, ser conhecido ex officio pelo magistrado, a qualquer momento do processo, para extinguir o feito sem resolução de mérito.
Também é evidente que a correta imputação da parte autora da lide é fundamental para que a decisão possa ser respeitada pelos órgãos da administração pública nas lides que discutem relações jurídicas individuais e concretas. Uma decisão concessiva da segurança obtida por pessoa X somente valerá para a própria pessoa X, e não para a pessoa Y – assim como para nenhuma outra.
Apesar dessas obviedades, é comum verificarmos petições iniciais sendo elaboradas sem o devido zelo quanto à conformação do polo ativo da lide em relação às filiais. Esses problemas certamente decorrem do entendimento de que matriz e filiais representam senão a mesma pessoa jurídica, de modo que a indicação da matriz no preâmbulo da petição inicial já seria suficiente para se identificar a autoria da lide.
Ainda que a premissa esteja perfeitamente correta quanto à inexistência de autonomia jurídica entre matriz e filiais, não se pode adotar essa postura em todas as discussões judiciais tributárias diante da jurisprudência então vigente, sob pena de a ação ser extinta ou de a decisão não poder ser aplicada pelos órgãos administrativos destinatários.
O Judiciário está repleto de decisões que abordam essa temática. A maioria delas é de tal modo superficial que não permite extrair a lógica jurídica que a sustenta. Outras, ainda, incorrem em divergência jurisprudencial, o que ocasiona mais dúvidas sobre os critérios para delimitação da autoria nas ações tributárias. Diante da relevância do tema e do cenário jurisprudencial então estabelecido, propomos, no presente artigo, a análise sistemática dos critérios adotados pela jurisprudência do STJ sobre a matéria.
A regra e as suas exceções
A jurisprudência do STJ, há anos, adota o entendimento de que matriz e filial são juridicamente autônomas no que diz respeito às ações antiexacionais – aquelas propostas por contribuintes pessoas jurídicas de direito privado, que discutem relações jurídico-tributárias. Uma das principais implicações desse entendimento repousa, justamente, na definição do estabelecimento que ostenta a legitimidade ad causam para discutir determinada relação jurídico-tributária.
Os fundamentos que sustentam esse entendimento jurisprudencial são variados. Os mais comuns consistem na existência de CNPJs próprios para as filiais, na existência de regras do Código Civil (art. 75, § 1o) e do Código Tributário Nacional (art. 127, II) que concebem a existência de mais de um domicílio para as pessoas jurídicas de direito privado, além da existência de regras tributárias próprias para apuração de créditos por estabelecimentos quanto aos tributos não cumulativos.
Sem a pretensão de examinarmos se esses fundamentos respeitam ou não às normas processuais e de direito privado que lhes são subjacentes, cumpre-nos examinar em quais casos se aplicam tais exigências.
IPI e ICMS
A jurisprudência do STJ, historicamente, sempre entendeu que matriz e filiais apresentam autonomia jurídica entre si para discussão de débitos de IPI e de ICMS. Isso se deve, precipuamente, ao fato de que os diplomas normativos que regem esses tributos estabelecerem a autonomia dos estabelecimentos para fins de apuração dos tributos, vide o que estabelece, para o IPI, o art. 57 da Lei n. 4.502/1964 e, para o ICMS, o art. 11, § 3º, II, da LC n. 87/1996.
Nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ICMS. […] ILEGITIMIDADE ATIVA DA MATRIZ EM RELAÇÃO A INDÉBITOS TRIBUTÁRIOS DAS SUAS FILIAIS. AGRAVO REGIMENTAL DE LOJAS AMERICANAS S/A. A QUE SE NEGA PROVIMENTO.[…] 2. A matriz não tem legitimidade para representar processualmente as filiais, nos casos em que o fato gerador do tributo se opera de maneira individualizada em cada estabelecimento comercial/industrial, haja vista que, para fins fiscais, matriz e filial são considerados entes autônomos.[…] (AgRg no REsp 1100690/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/04/2017, DJe 19/04/2017. Grifo acrescido)
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. IPI. LITISPENDÊNCIA. DEMANDAS AJUIZADAS PELA MATRIZ E PELAS FILIAIS. EMPRESAS DISTINTAS. 1. O STJ firmou o entendimento de que inexiste litispendência entre ações intentadas pela empresa matriz e filiais, porque as partes são pessoas jurídicas distintas. 2. Agravo Regimental não provido. (AgRg no REsp 591.595/BA, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/08/2009, DJe 27/08/2009. No mesmo sentido: REsp 665.252/SC, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/09/2006, DJ 05/10/2006. Grifos acrescidos)
A redação adotada nessas decisões parece indicar a inclinação do STJ quanto ao entendimento da autonomia jurídica das filiais para todo e qualquer caso. Entretanto, não é disso que realmente se trata. As decisões a seguir citadas esclarecem essa imprecisão.
Contribuições Previdenciárias e de Terceiros
As contribuições sociais representam um caso à parte. Até por volta de 2013, o STJ apresentava divergência sobre a matéria. A partir desse período, porém, a Corte pacificou o seu entendimento quanto à inexistência de autonomia jurídica das filiais, em função da centralização do recolhimento das contribuições previdenciárias na matriz, nos termos dos arts. 2º e 13 da IN 2005/2021.
Citamos algumas decisões representativas desse atual posicionamento:
TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. LEGITIMIDADE. MATRIZ. ARRECADAÇÃO CENTRALIZADA.1. Conforme mencionado na decisão agravada, existe a orientação de que “a matriz não tem legitimidade para representar processualmente as filiais, nos casos em que o fato gerador do tributo se opera de maneira individualizada em cada estabelecimento comercial/industrial, haja vista que, para fins fiscais, matriz e filial são considerados entes autônomos” (AgRg no REsp 1.100.690/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 19/4/2017). 2. Entretanto tal posicionamento não se aplica no caso de contribuições previdenciárias ou sociais, cuja apuração é feita de forma centralizada na matriz, responsável pelas folhas de salários, ainda que o recolhimento da exação seja feito por cada estabelecimento, com seu CNPJ próprio. […] (AgInt no REsp 1710126/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/09/2020, DJe 06/10/2020. Grifos acrescidos)
[…] CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA A CARGO DA EMPRESA. REGIME GERAL DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. LEGITIMIDADE ATIVA DA MATRIZ PARA PLEITEAR EVENTUAL REPETIÇÃO DE INDÉBITO. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE COTEJO ANALÍTICO. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.1. “Conforme salientado pelo Tribunal regional, a empresa, composta de sua matriz e filiais, é a responsável pelo pagamento das contribuições sociais incidentes sobre a folha de pagamento. Dessarte, a matriz deve, entre outras coisas, apurar a base de cálculo do tributo, recolhê-lo e cumprir com as obrigações acessórias” sendo que “a fiscalização perpetrada pelo Fisco é centralizada na matriz da pessoa jurídica de direito privado; portanto, o polo ativo do mandamus deve ser composto pela sua sede” (REsp 1587676/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/05/2016, DJe 01/06/2016). 2. Agravo interno não provido. (AgInt nos EDcl no REsp 1817342/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/10/2019, DJe 29/10/2019. Grifos acrescidos)
No mesmo sentido, versam: AgInt nos EDcl no REsp 1779428/SC; REsp 1587676/PR; REsp 1.086.843/PR.
PIS/COFINS e demais tributos
Em relação às contribuições ao PIS e COFINS, diversamente do que se viu em relação ao IPI e ICMS, o entendimento do STJ é no sentido de que as filiais não detêm legitimidade para discutir a exigência dessas contribuições. Veja-se:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. […] DISCUSSÃO SOBRE BASE DE CÁLCULO DO PIS/COFINS, COM INCLUSÃO DO ICMS. IMPETRAÇÃO PELA FILIAL DA PESSOA JURÍDICA. AUTONOMIA DE CADA ESTABELECIMENTO. INEXISTÊNCIA. […] 2. A discussão sobre a base de cálculo do tributo, pago globalmente, sobre a incidência ou não do ICMS, não pode ser feita, judicialmente pelo estabelecimento filial, por falta de legitimidade ativa. 3. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é o de que a autoridade coatora é aquela do local da sede da matriz da pessoa jurídica, que possui competência para a fiscalização e arrecadação dos tributos devidos pela impetrante. 4. Agravo Regimental não provido. (AgRg no REsp 1495447/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/05/2015, DJe 22/05/2015. Grifos acrescidos)
A expressão “pago globalmente”, adotada na ementa, diz respeito à concepção de que as contribuições ao PIS e COFINS são recolhidas a partir da concentração de todas as receitas da sociedade empresária (matriz e filiais) na própria matriz, a teor do que preconiza o art. 15, III, da Lei n. 9.779/1999, motivo pelo qual a jurisprudência considera inexistente a autonomia jurídica das filiais em relação à matriz.
Não encontramos acórdãos do STJ quanto ao IRPJ, ISS, ITBI, ITCMD. Todavia, como esses tributos são apurados pela matriz, é seguro concluir que a Corte se posicionaria pela inexistência de autonomia jurídica das filiais nas discussões relativas a esses impostos, mantidos os critérios hoje vigentes. Essa mesma conclusão, claro, vale também para discussões que envolvam outras espécies tributárias não mencionadas ao longo desse estudo que sigam essa mesma característica de recolhimento centralizado.
Considerações Finais
A título de síntese conclusiva, podemos afirmar, com base na jurisprudência do STJ hoje estabelecida, em relação às ações que questionam as relações jurídico-tributárias sobre tributos apurados por cada estabelecimento – são os casos de IPI e ICMS –, que as filiais e matriz são juridicamente autônomas entre si, motivo pelo qual, para se discutir integralmente os tributos da sociedade empresária, deve-se estabelecer litisconsórcio ativo entre matriz e as filiais ou ações autônomas.
Por fim, chamamos a atenção para uma questão processual de imperativa observância decorrente dessa questão. É que nas circunstâncias em que matriz e filial são juridicamente autônomas e submetem-se a diferentes delegacias da Receita Federal, por não estarem domiciliadas em uma mesma zona fiscal, deve-se indicar como autoridade coatora, no polo passivo da inicial, cada um dos delegados titulares das respectivas delegacias. Nessa situação, existem duas saídas: (i) uma delas é a propositura da ação na seção judiciária Distrito Federal, por ser ele competente para apreciação de todas as causas contrárias à União Federal (vide art. 109, § 2º, do CF); (ii) a outra delas é a propositura de ações em cada uma das seções judiciárias em que estiver domiciliada a matriz ou as filiais.
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