A relevância da lei complementar nos conflitos de competência tributária entre impostos

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É histórico o elevado grau de insatisfação da população diante do sistema tributário vigente, e as reclamações não giram em torno apenas da alta carga tributária.

Mais recentemente, o problema da complexidade das normas tributárias ganhou força nos fóruns jurídicos, políticos e entre a população em geral – a ponto de mover diversas propostas de substanciais reformas no sistema tributário, cujo mote central é a radical simplificação do sistema. E isso não ocorre sem razão.

Existem diversos dados que contribuem para ilustrar a dimensão desse problema. O Brasil permanece no ranking dos países com o maior gasto de tempo com obrigações tributárias, variando de 1.483 a 1.501 horas por ano, conforme o relatório Doing Business Subnacional Brasil, publicado em 2021, pelo Banco Mundial.

Diversas matérias jornalísticas publicadas recentemente apontam a existência de R$ 1 trilhão em créditos tributários discutidos pelos contribuintes no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

Dentre as diversas situações a que se submetem os contribuintes diante do sistema vigente, uma das mais infelizes caracterizam-se pelos conflitos de competência tributária.

Não se trata, afinal, de uma simples controvérsia entre contribuinte e fisco sobre o dever ou não de pagar determinada obrigação tributária ou sobre o seu valor. Esses conflitos de competência tributária caracterizam-se pela disputa entre pelo menos dois entes tributantes sobre a titularidade da competência para tributar determinada manifestação de riqueza, estando o contribuinte, que é certamente o elo mais fraco nessa relação, no meio da disputa.

→ O QUE SÃO CONFLITOS DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

O sistema tributário brasileiro é formado por cinco espécies tributárias, segundo a teoria quinquipartite ou pentapartida, seguida pela doutrina e jurisprudência majoritárias. São elas:
impostos,
taxas,
contribuições de melhorias,
empréstimo compulsório e
contribuições especiais.

Cada uma delas tem um regime jurídico específico e devem respeitar regras e princípios próprios, previstos na Constituição Federal e no Código Tributário Nacional.

Assim, por exemplo, é que um imposto não pode ter a sua receita vinculada previamente a uma atividade estatal, tratando-se de finalidade própria para as taxas ou contribuições especiais; contribuições especiais somente podem ser instituídas pela União; existem somente duas situações que admitem a instituição de empréstimos compulsórios etc.

Todos os entes federativos – união, estados, município e distrito federal – são competentes para instituir seus próprios tributos para financiarem a atividade estatal. Essa discriminação de competência é realizada de forma privativa pela Constituição Federal: os tributos são especificados e o poder de instituí-los é conferido exclusivamente a cada um dos entes estatais existentes.

Dentre todas as espécies tributárias existentes, certamente a que ocasiona a maior arrecadação e, portanto, a que mais repercute no patrimônio dos contribuintes é o imposto.

Essa espécie tributária difere-se das demais por ter preponderante caráter arrecadatório e pela sua hipótese de incidência independer de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte (art. 16 do CTN).

Cada um dos entes estatais pode instituir impostos sobre específicas hipóteses de incidência tributária (ou “fatos geradores”), não podendo um ente político, ao instituir seus impostos, ampliar a sua própria competência em detrimento da competência tributária de outro, em razão do caráter privativo das competências tributárias.

O centro das controvérsias dos conflitos de competência tributária é formado, justamente, pela disputa dos entes tributantes sobre a competência para tributar, por meio de impostos, diversas atividades econômicas ou outras formas de manifestação de riqueza.

Na prática, os conflitos de competência tributária podem ser compreendidos como situações em que um ente tributante invade a esfera de competência de outro ente tributante para tributar determinada manifestação de riqueza.

Esses conflitos, vale esclarecer, não são sinônimos de bitributação, visto que não é possível extrair das regras constitucionais de repartição de competência tributária uma regra geral que configure a vedação à sobreposição de competências tributárias.

Existem, aliás, previsões constitucionais que a admitem, como é o caso, dentre outros, da previsão quanto à possibilidade de o ICMS e IPI incidirem sobre uma mesma operação (art. 144, § 2º, XI, da CF) e de o ICMS e o II incidirem sobre operações que envolvem energia elétrica como bem negocial (art. 155, § 3º, da CF).

Embora a bitributação não seja economicamente desejável, sob o prisma constitucional, ela é permitida, desde que os tributos exigidos estejam em estrita conformidade com as regras constitucionais de repartição de competência. Mas, então, como se entender que um ente tributante está a invadir a esfera de competência tributária de outro?

Verifica-se, na prática da advocacia tributária, que os casos de conflito de competência em relação aos impostos ocorrem, na maioria das situações, em razão de equívocos de interpretação das leis levados a efeito pela Administração Tributária, na regulamentação infralegal das matérias sobre incidência tributária, que tende a ampliar sua própria competência, em detrimento da competência dos demais.

Não há dúvidas de que sempre haverá invasão de competência diante do quadro em que se verifica a exigência, por dois entes tributantes, do mesmo tributo, como ocorre nas situações em que dois estados exigem IPVA sobre a propriedade de um mesmo veículo ou dois municípios exigem ISS sobre um mesmo serviço. Diz-se, nesse caso, que existe conflito horizontal de competência.

O conflito de competência vertical, por outro lado, caracteriza-se pela exigência, por dois entes tributantes, de tributos distintos, sendo que, por sua própria natureza, essas hipóteses de incidência não poderia corresponder, concomitantemente, às duas materialidades que demarcam as respectivas regras de competência, por serem elas ontologicamente excludentes entre si.

Daí, por exemplo, que sobre a prestação da maioria dos serviços somente ser exigido o Imposto sobre Serviços (ISS); sobre a circulação de mercadoria, o Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS); sobre a propriedade urbana, o Imposto sobre a propriedade Territorial Urbana (IPTU), sobre a propriedade territorial, o Imposto sobre a Propriedade Rural.

→ O PAPEL DA LEI COMPLEMENTAR NA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS

O exemplo mais didático sobre conflito de competência vertical talvez seja do ITR versus IPTU. Não há como se concordar, afinal, que uma propriedade possa ser, ao mesmo tempo, rural e urbana.

Trata-se de uma impossibilidade lógica. Com efeito: onde incide IPTU, não incide ITR, e vice-versa. Apesar da obviedade dessa constatação, existem imóveis que apresentam elementos pertinentes aos dois tributos, assim surgindo a dúvida sobre a competência tributária.

O critério para solução desse conflito de competência está previsto em lei de caráter complementar, atualmente não mais existindo controvérsia jurisprudencial no assunto. Não basta que o imóvel esteja situado em zona urbana para ser objeto de IPTU, existindo requisitos adicionais para tanto.

Logo, o art. 32 do CTN exige, em adição, que o imóvel ou conste de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, ou seja favorecido com pelo menos dois melhoramentos urbanos. Paralelamente a isso, o art. 15 do Decreto-Lei n. 57/1966 estabelece que o imóvel será objeto de ITR quando tiver destinação rural, nos termos da jurisprudência pacífica do STJ, que admitiu o caráter complementar do referido Decreto-Lei (REsp 1112646/SP, Tema 174 de recursos repetitivos).

É interessante se considerar também as atividades de bares e restaurantes, em que existem manifestação de elementos típicos tanto de prestação de serviço (na preparação de alimentos e no seu fornecimento) como de circulação de mercadorias (na venda de bebidas e alimentos aos clientes) daí se dizendo se tratar de atividades mistas. Há muito tempo não existe mais controvérsia jurídica quanto à incidência de ISS ou ICMS, por força do critério lei complementar, considerando-se o previsto na LC 86/1996, em seu art. 2º, inc. I, que define incidir ICMS.

Ocorre, porém, que nem sobre todas as situações de conflito de competência o critério lei complementar prepondera para jurisprudência, o que contribui de forma relevante para a insegurança jurídica.

É o que ocorre em relação ao ICMS e ISS na atividade de composição gráfica. O STJ, em 2009, havia pacificado o entendimento quanto à incidência do ISS nessas operações, com base no critério da legislação complementar, considerando que a previsão do subitem 13.05 da Lei Complementar 116/2003 resultava na definição de que se tratava de atividade tributável pelo ISS, assim excluindo a incidência do ICMS, como exemplifica o REsp 1092206/SP.

O Plenário do STF, em 2011, ao apreciar a medida cautelar na ADI 4389, adotou posicionamento distinto do STJ, com base no critério da “destinação”, em detrimento do disposto no subitem 13.05 da Lei Complementar 123/2006. Definiu que incide ICMS nas situações em que a produção de embalagens sob encomenda (personalizada) seja destinada à subsequente utilização em processo de industrialização ou posterior circulação de mercadoria, ou seja, seja destinada a outra etapa mercantil da cadeia econômica. Do contrário, se a destinação da produção de embalagem for para consumidor final, incidirá ISS, de acordo com essa decisão.

Também é oportuno lembrar o posicionamento do STF em relação à incidência de ISS ou ICMS sobre a comercialização de softwares. Em 1998, o STF proferiu relevante precedente sobre a matéria, no julgamento do RE 178.626, com base em critério que, inspirado nas lições da doutrina de direito privado, considerava o núcleo objeto da obrigação – se preponderava uma obrigação de “dar” ou de “fazer”.

A partir dessa clássica concepção de direito privado, o STF definiu que se sujeitam ao ICMS os programas standard, desenvolvidos e postos à disposição de clientes indistintamente (“softwares de prateleira”), ao passo em que se sujeitam ao ISS os programas por encomenda, desenvolvidos especificamente para determinado cliente. Isso porque o fornecimento dos primeiros caracteriza uma obrigação de “dar”, ao passo que o fornecimento dos segundos, de “fazer”.

Esse precedente, no entanto, foi revisto pelo STF em 2021, por oportunidade de julgamento da ADI 5659. Consta do voto do relator, Min. Dias Toffoli: “A tradicional distinção entre software de prateleira (padronizado) e por encomenda (personalizado) não é mais suficiente para a definição da competência para a tributação dos negócios jurídicos que envolvam programas de computador em suas diversas modalidades.” Prevaleceu, nessa nova orientação, o critério da lei complementar, considerando a Corte Suprema que ocorre a incidência de ISS (mesmo sobre fornecimento de softwares de prateleira) nesses contratos, em atenção à previsão do subitem 1.05 da Lei Complementar 166/2003 (“Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação”).

→ EM DEFESA DO CRITÉRIO DA LEI COMPLEMENTAR

Os casos mencionados neste estudo representam apenas uma pequena parcela do problema, mas são suficientes para ilustrar a inexistência, entre os tribunais superiores, de consenso sobre os critérios para resolução dos conflitos de competência tributária.

RICARDO ANDERLE, na obra “Conflito de Competência Tributária entre o ISS, ICMS e IPI”, elaborou um inigualável estudo sobre os critérios adotados na jurisprudência dos tribunais superiores para solução de conflitos de competência envolvendo esses referidos impostos (ISS, ICMS e IPI) entre 781 casos.

Ele constatou no estudo diversos pontos que bem resumem o quadro de insegurança jurídica que recai sobre os contribuintes em relação a qual tributo incide em determinadas atividades econômicas:

“(i) aumento, nos últimos anos, da diversidade de critérios adotados;
(ii) uso de variados critérios para a mesma atividade, com resultados contraditórios;
(iii) impossibilidade de se apontar um prognóstico na jurisprudência;
(iv) critérios diferentes utilizados no STJ e no STF e, ainda pior, na mesma turma do respectivo tribunal ou até na mesma lide”.

Considerando-se, diante desse cenário, o elevado e intolerável grau de insegurança jurídica para o qual contribuiu o emprego de variados critérios de interpretação das regras de repartição de competência tributária, e também o de ser uma das funções constitucionais da lei complementar a de dirimir conflitos de competência (art. 146, I, da CF), seria louvável que os tribunais respeitassem os desígnios do legislador complementar nessa matéria – tal como o fez o STF no novo precedente sobre a tributação dos softwares, na ADI 5659.

A preponderância da lei complementar na solução de conflitos de competência, no cenário atual, está longe de consistir em um critério perfeito. É possível que o legislador complementar cometa abusos, mas nesses casos mais extremos, e apenas nesses, é necessário que o Judiciário intervenha para definir a competência tributária.

O que parece não ser aceitável, por não colaborar em nada com a segurança jurídica, é que o Judiciário interprete livremente os conceitos constitucionais, de modo a desconsiderar os critérios definidos pelo legislador complementar diante de casos cuja materialidade é reconhecidamente controversa entre acadêmicos.

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